Quando eu tinha uns nove anos meu pai chegou com um livro nas
mãos: Deuses, Túmulos e Sábios - O Romance da Arqueologia, de C. W. Ceram.
Ele já vinha me contando umas histórias que estavam
despertando minha atenção. Segundo suas informações, uma parte dos relatos da
Bíblia eram verdadeiros (eu já andava meio ateia naquele tempo hahaha), a
guerra de Tróia realmente tinha acontecido e ninguém sabia como tinham sido
construídas as pirâmides do Egito. Suspeito que ele tinha um plano maquiavélico
(só que não kkk) em mente: me transformar numa leitora. Sua tática era a de
despertar o interesse para depois jogar a isca.
Sim, porque ser leitor não é ser alfabetizado, é algo
diferente. Ser leitor é ter acesso a um universo paralelo sem o qual a vida não
tem graça. É ter o vício e não querer sair dele, é se relacionar de forma quase
erótica com os livros. Antes disso eu era apenas um projeto: já lia os assuntos
da minha idade, como Sítio do Pica-Pau Amarelo, algumas biografias pequenas e
as Pollyannas da vida. Depois virei profissional. Nível de dependência: passar
a manhã inteira escondida embaixo da cama, quietinha pra minha vó não notar,
lendo os livros que eram proibidos para a minha idade, como os de Nelson
Rodrigues. Ou, em ano de vestibular, não ter dinheiro para comprar o livro que
queria e ir todo dia à livraria para ler um capítulo por vez, até terminar.
Hahaha!
Então foi um fascínio quando meu pai apareceu com esse livro,
já bem surrado, com algumas folhas se soltando, um barbante como marcador de
página. Na capa tinha a esfinge em primeiro plano, com a pirâmide de Quéops ao
fundo, sob um céu vermelho. Dava pra quase sentir o calor do sol do Egito e o
peso dos milhares de anos daquela história tão misteriosa. Meu pai disse: “Não
precisa começar da primeira página. Veja aí no índice o que lhe interessa e vá
lendo”.
Me joguei. A obra é dividida em partes, cada uma com um tema:
o livro das estátuas, o das torres, o da pirâmides, etc. Meu olhar foi diretinho
para um capítulo chamado Howard Carter
Descobre Tutancâmon. E só posso descrever de uma maneira: mágica! Entrei
ali e não saí mais, até hoje.
A linguagem do autor é fluente, romanceada, leve, boa de ler.
Parecia que eu estava acompanhando ao vivo, passo a passo, como Carter chegou
ao túmulo do rei menino, morto com apenas 18 anos. Eu estava vendo a parede se
abrir e um tesouro de milênios aparecer. Tanto ouro, tanta arte, tantas
preciosidades, e eu ali, presenciando tudo. Até hoje vejo as carruagens
desmontadas e empilhadas num canto, o trono cheio de entalhes, a máscara de
ouro e lápis lazuli, uma das maiores preciosidades do mundo. E o melhor: a
múmia! Eu estava com ele, eu ajudei a descobrir, fiz o primeiro corte no linho
que envolvia o corpo. E também me frustrei quando alguns objetos se desfizeram
em pó ao entrar em contato com o ar depois de milênios. Tive vontade de chorar.
Minha imaginação colocava cores nas fotos em preto e branco.
O plano do meu pai funcionou: eu era uma leitora. Daí pra
engolir todas as outras páginas do livro foi no piloto automático: eu não tinha
mais como parar.
Fiz mil aventuras junto com os arqueólogos: desbravei as
selvas da Guatemala, resistindo ao calor e aos mosquitos, para encontrar a
pirâmide de Tikal. Fui cavar um túnel na Itália e encontrei Pompeia. Usei as
jóias encontradas em Troia e chamei a mim mesma de Helena. E descobri que não
apenas a Torre de Babel tinha existido como seu verdadeiro nome era Etemenanki.
Fiquei embasbacada com a genialidade do alemão que decifrou a
escrita cuneiforme. Infelizmente ele não levou o crédito porque era um simples
professor de ensino médio. A ciência também tem, e muito, suas politicagens.
Aliás, gênios não faltavam nesse livro. Schliemann leu a Ilíada quando era
criança, botou na cabeça que iria encontrar Tróia e encontrou. Detalhe:
primeiro ficou rico pra ter dinheiro para as escavações, depois se trancou num
quarto de hotel e aprendeu um idioma a cada três meses (não lembro quantos
foram), e depois foi lá e achou. Imagina isso na minha cabeça de criança!
Foi assim que desisti de ser astronauta, minha primeira
profissão, e decidi ser arqueóloga. E olha que nem existia Indiana Jones ainda!
Mas como essa vida é muito injusta eu acabei me tornando mesmo foi advogada.
Kkk
Enfim, Deuses, Túmulos e Sábios é o livro da minha vida. Ele
me transformou definitivamente em leitora. Abriu-me um universo tão amplo, mas
tão amplo, que depois dele tudo passou a me interessar, de astronomia a
filosofia. Foi quando eu disse: “Putz! Não posso mais viver sem isso!” Foi
quando começou A Fome. Todos os outros vieram depois. Mas ele sempre volta. Já
perdi a conta de quantas vezes o li e reli, e o fascínio é sempre o mesmo, como
na primeira vez.
Já adulta, viajando pelo mundo, a cada vez que tenho a
oportunidade de ver ao vivo uma daquelas preciosidades que vi no livro sempre
me emociono: o Código de Hamurabi, um dos capitéis do palácio de Dario, objetos da Mesopotâmia, etc., etc. Vi o busto
de Nefertiti e chorei. E tenho duas frustrações: estive na frente do museu que
guarda o Portão de Ishtar, que era a porta (original, a verdadeira) de entrada
da cidade de Babilônia, mas ele estava fechado pra reforma. E também estive na
frente do museu que expõe o cocar de Montezuma mas não tive tempo de entrar. Mas
tudo bem, ainda verei a ambos.
A nota triste é que meu pai me deu esse livro de presente (o
mesmo exemplar, velhinho, da minha infância), mas um dia desses me pediu
emprestado e o perdeu. Per-deu! Sério, eu chorei. Chorei mesmo, lágrimas
rolando pra todo lado. Dei piti. Quase morro. Ainda tenho fé de que ele o
encontre lá pelo meio dos trocentos mil livros que tem em sua casa, mas por via
das dúvidas já mandei buscar um exemplar num sebo virtual. Não é a mesma coisa,
claro, não é o MEU livro, mas pelo menos o texto estará lá.
E você? Com qual livro se tornou realmente leitor? Conte aí!
Quero saber.