Páginas

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Com qual livro você se tornou leitor?


Quando eu tinha uns nove anos meu pai chegou com um livro nas mãos: Deuses, Túmulos e Sábios - O Romance da Arqueologia, de C. W. Ceram.

Ele já vinha me contando umas histórias que estavam despertando minha atenção. Segundo suas informações, uma parte dos relatos da Bíblia eram verdadeiros (eu já andava meio ateia naquele tempo hahaha), a guerra de Tróia realmente tinha acontecido e ninguém sabia como tinham sido construídas as pirâmides do Egito. Suspeito que ele tinha um plano maquiavélico (só que não kkk) em mente: me transformar numa leitora. Sua tática era a de despertar o interesse para depois jogar a isca.

Sim, porque ser leitor não é ser alfabetizado, é algo diferente. Ser leitor é ter acesso a um universo paralelo sem o qual a vida não tem graça. É ter o vício e não querer sair dele, é se relacionar de forma quase erótica com os livros. Antes disso eu era apenas um projeto: já lia os assuntos da minha idade, como Sítio do Pica-Pau Amarelo, algumas biografias pequenas e as Pollyannas da vida. Depois virei profissional. Nível de dependência: passar a manhã inteira escondida embaixo da cama, quietinha pra minha vó não notar, lendo os livros que eram proibidos para a minha idade, como os de Nelson Rodrigues. Ou, em ano de vestibular, não ter dinheiro para comprar o livro que queria e ir todo dia à livraria para ler um capítulo por vez, até terminar. Hahaha!

Então foi um fascínio quando meu pai apareceu com esse livro, já bem surrado, com algumas folhas se soltando, um barbante como marcador de página. Na capa tinha a esfinge em primeiro plano, com a pirâmide de Quéops ao fundo, sob um céu vermelho. Dava pra quase sentir o calor do sol do Egito e o peso dos milhares de anos daquela história tão misteriosa. Meu pai disse: “Não precisa começar da primeira página. Veja aí no índice o que lhe interessa e vá lendo”.



Me joguei. A obra é dividida em partes, cada uma com um tema: o livro das estátuas, o das torres, o da pirâmides, etc. Meu olhar foi diretinho para um capítulo chamado Howard Carter Descobre Tutancâmon. E só posso descrever de uma maneira: mágica! Entrei ali e não saí mais, até hoje.

A linguagem do autor é fluente, romanceada, leve, boa de ler. Parecia que eu estava acompanhando ao vivo, passo a passo, como Carter chegou ao túmulo do rei menino, morto com apenas 18 anos. Eu estava vendo a parede se abrir e um tesouro de milênios aparecer. Tanto ouro, tanta arte, tantas preciosidades, e eu ali, presenciando tudo. Até hoje vejo as carruagens desmontadas e empilhadas num canto, o trono cheio de entalhes, a máscara de ouro e lápis lazuli, uma das maiores preciosidades do mundo. E o melhor: a múmia! Eu estava com ele, eu ajudei a descobrir, fiz o primeiro corte no linho que envolvia o corpo. E também me frustrei quando alguns objetos se desfizeram em pó ao entrar em contato com o ar depois de milênios. Tive vontade de chorar. Minha imaginação colocava cores nas fotos em preto e branco.

O plano do meu pai funcionou: eu era uma leitora. Daí pra engolir todas as outras páginas do livro foi no piloto automático: eu não tinha mais como parar.

Fiz mil aventuras junto com os arqueólogos: desbravei as selvas da Guatemala, resistindo ao calor e aos mosquitos, para encontrar a pirâmide de Tikal. Fui cavar um túnel na Itália e encontrei Pompeia. Usei as jóias encontradas em Troia e chamei a mim mesma de Helena. E descobri que não apenas a Torre de Babel tinha existido como seu verdadeiro nome era Etemenanki.

Fiquei embasbacada com a genialidade do alemão que decifrou a escrita cuneiforme. Infelizmente ele não levou o crédito porque era um simples professor de ensino médio. A ciência também tem, e muito, suas politicagens. Aliás, gênios não faltavam nesse livro. Schliemann leu a Ilíada quando era criança, botou na cabeça que iria encontrar Tróia e encontrou. Detalhe: primeiro ficou rico pra ter dinheiro para as escavações, depois se trancou num quarto de hotel e aprendeu um idioma a cada três meses (não lembro quantos foram), e depois foi lá e achou. Imagina isso na minha cabeça de criança!

Foi assim que desisti de ser astronauta, minha primeira profissão, e decidi ser arqueóloga. E olha que nem existia Indiana Jones ainda! Mas como essa vida é muito injusta eu acabei me tornando mesmo foi advogada. Kkk

Enfim, Deuses, Túmulos e Sábios é o livro da minha vida. Ele me transformou definitivamente em leitora. Abriu-me um universo tão amplo, mas tão amplo, que depois dele tudo passou a me interessar, de astronomia a filosofia. Foi quando eu disse: “Putz! Não posso mais viver sem isso!” Foi quando começou A Fome. Todos os outros vieram depois. Mas ele sempre volta. Já perdi a conta de quantas vezes o li e reli, e o fascínio é sempre o mesmo, como na primeira vez.

Já adulta, viajando pelo mundo, a cada vez que tenho a oportunidade de ver ao vivo uma daquelas preciosidades que vi no livro sempre me emociono: o Código de Hamurabi, um dos capitéis do palácio de Dario,  objetos da Mesopotâmia, etc., etc. Vi o busto de Nefertiti e chorei. E tenho duas frustrações: estive na frente do museu que guarda o Portão de Ishtar, que era a porta (original, a verdadeira) de entrada da cidade de Babilônia, mas ele estava fechado pra reforma. E também estive na frente do museu que expõe o cocar de Montezuma mas não tive tempo de entrar. Mas tudo bem, ainda verei a ambos.

A nota triste é que meu pai me deu esse livro de presente (o mesmo exemplar, velhinho, da minha infância), mas um dia desses me pediu emprestado e o perdeu. Per-deu! Sério, eu chorei. Chorei mesmo, lágrimas rolando pra todo lado. Dei piti. Quase morro. Ainda tenho fé de que ele o encontre lá pelo meio dos trocentos mil livros que tem em sua casa, mas por via das dúvidas já mandei buscar um exemplar num sebo virtual. Não é a mesma coisa, claro, não é o MEU livro, mas pelo menos o texto estará lá.

E você? Com qual livro se tornou realmente leitor? Conte aí! Quero saber.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Do amor pelos livros


Eu nasci numa família de leitores. Acho que não pode haver maior sorte no mundo. Na casa do meu pai e na da minha avó paterna eu estava sempre cercada por todo tipo de literatura.
Meu pai sempre gostou de história do Brasil e do mundo, deuses astronautas, arqueologia. Tia Graça preferia os romances, fossem os clássicos da literatura nacional e internacional, fossem os feministas do pós-guerra em diante. Em sua estante tinha Jorge Amado e Shakespeare junto com Simone de Beauvoir. E muitas, muitas revistas, desde as femininas como Nova e Claudia até as semanais de informação. Minha vó tinha fixação pela Roma antiga, e não sei porque cargas d´água encasquetou que Nero era o maior monstro que já existiu na face da terra. Não adiantava citar Hitler, Jack o Estripador, Átila o Huno. Não: Nero era o pior e pronto. Ela contava as histórias sobre ele com um olhar horrorizado, quase como se conta história de fantasma, com a voz um pouco baixa pra não atrair o mal. Só faltava se benzer. Acho até que se benzeu mesmo algumas vezes. No quarto de tia Graça havia uma prateleira alta numa estante onde ficavam os livros proibidos pra mim, por causa da idade. Adivinha quais foram os que eu li primeiro?
  
Minha cidade não tinha livraria mas lá em casa sempre tinha livro novo. As fontes eram várias. Alguns vinham de Recife, outros vinham de um catálogo chamado Círculo do Livro, mensal, que vendia pelos correios e a gente sempre comprava. E por vezes apareciam uns vendedores na porta, então tínhamos coleção completa de Graciliano Ramos, Machado de Assis, etc. Meu pai mantinha (ainda mantém) com os amigos uma rede de intercâmbio: um compra e sai emprestando pros outros. O bom é que até hoje sempre me chega uma novidade, e eu sempre empresto algum dos meus. Agora mesmo estou com dois desses voadores.
Eu criança, todo mundo lia pra mim. Eu tinha livrinhos com historinhas e ficava fascinada com as figuras de uma Bíblia bem grandona de minha vó. Folheava durante horas sem saber ler, só vendo as imagens. Depois que cresci foi que me dei conta de que aquelas eram algumas das pinturas mais clássicas de todos os tempos: a última ceia de Leonardo da Vinci, a descida da cruz de Rembrandt, a anunciação de Fra Angelico. Quando fui ter aulas de história da arte no curso de Jornalismo, todas essas pinturas já me eram familiares. Eu só não conhecia a teoria por trás delas.
Alguns dos meus livros de historinhas eu guardo até hoje. O primeiro que consegui ler por mim mesma foi Pé de Pilão, de Mário Quintana. Conta a história, em forma de versos, de um menino enfeitiçado por uma bruxa que vira um pato e tenta livrar sua vó do feitiço que a transformou numa velha. Pra mim, criatura super ligada à avó, essa história tinha muita importância. E ele tinha umas ilustrações bem ao estilo dos anos 70, meio flower power, meio hippie. Acho que demorei meses pra lê-lo todo, porque ainda estava aprendendo a juntar as sílabas. Kkkkk Olha ele aqui.
 
Depois veio uma coleção inesquecível: Reino Colorido da Criança – Imagem e Som. Eram contos e fábulas de várias partes do mundo, com ilustrações riquíssimas (até hoje não vi nada igual em parte alguma) e com algumas das historinhas narradas em disquinhos coloridos. Olha uma das ilustrações aí à esquerda. Essa era de um conto árabe: o príncipe Kamar e a princesa Budur.
Minha vó tinha uma coleção de poetas de língua portuguesa formada por mini livrinhos que cabiam certinho nas minhas mãos de criança (abaixo, à direita). Nessa época eu já estava alfabetizada e já conseguia ler dando o ritmo dos poemas. Até hoje sei de cor muita coisa de Olavo Bilac, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, etc. “Ora (direis) ouvir estrelas!”... Essa coleção agora é minha, depois que ela morreu. Já meu pai gostava de Guilherme de Almeida, Augusto dos Anjos... E tia Graça era Vinícius de Moraes, Drummond... Eu juntava tudo e lia. Simplesmente ia lendo.
 
A biblioteca municipal emprestava livros. Desde os oito, nove anos eu já tinha minha ficha lá. O bibliotecário (não lembro o nome dele) me adorava e sempre que eu chegava ele tinha separado algo pra me oferecer. Comecei com os infantis e depois fui progredindo: biografia de Gandhi, Segunda Guerra Mundial, etc. Até o dia em que a galera começou a roubar os livros e a biblioteca deixou de emprestar. Alguém tinha que fazer uma cagada, né?
 
Tia Graça tinha uma amiga, Dade, que tinha ido estudar na Inglaterra e, na volta, apareceu com um monte de coisa interessante, em português: História da Arte da Universidade de Cambridge, autores que eu não conhecia, etc. Todo sábado cedinho íamos para a casa dela para, de lá, ir pra o centro da cidade fazer compras. Enquanto Dade se arrumava e tomava café da manhã, eu rasgava o plástico dos livros dela e lia. Fiquei versada em duas coisas: em autores novos e em peruíces como maquiagem, roupas, bijoux, além de aprender antecipadamente sobre namorados com as conversas delas. Hehehe
 
Meu tempo de leitura propriamente dito se passava no terraço da casa de minha vó. Eram manhãs ou tardes inteirinhas (dependendo do horário do colégio). Eu lembro da luz dourada, do ventinho, da calma, do balanço das folhas do coqueiro que tinha no jardim, do prazer inacreditável que era ficar ali. Essas leituras não tinham critério nenhum: o que caísse na minha mão eu lia. Tinha um carteiro que também gostava de ler e todo dia parava pra conversar sobre o que estava lendo. Há alguns anos, adulta, encontrei-o por acaso no meio da rua aqui em Recife e novamente conversamos sobre livros. Hahahaha!
Assim, quando vim morar em Recife, aos 16, eu já tinha lido Machado de Assis todo, Graciliano Ramos todo, vários autores eu já tinha lido totalmente. Pro vestibular não tive maiores dificuldades nessa área (em compensação, no restante eu sou totalmente ignorante até hoje; não tinha tempo pra matemática, né?).
 
Mas quando eu pensava que já estava bem adiantada na minha vida de leitora, surgiu ele: José Alexandre, o gigante loiro que eu conheci no cursinho e que não foi com a minha cara por pura inveja, porque eu estava lendo Os Versículos Satânicos e ele não tinha lido ainda (risos). Passada a antipatia inicial (dele por mim, não minha por ele), ficamos amigos. E ele me mostrou todo um universo que eu não conhecia: Saramago, Sartre, Kafka, Camus, Bukowski, Asimov, etc. Como é que eu não conhecia esse povo? Como isso nunca tinha caído na minha mão antes? Foi um período mágico. Manhãs e tardes inteiras falando sobre livros, livros, livros. Porém, não sei como, passamos os dois no vestibular: eu pra jornalismo, ele pra engenharia.
Na faculdade (primeiro em jornalismo na UFPE, depois em direito na UNICAP) começaram as leituras acadêmicas: Foucault, Habermas, Bobbio, Kelsen. Descobri que, quanto mais complicado, mais eu gostava. É bom queimar os neurônios. Em jornalismo, me maravilhei com a história da arte. Amor sem fim, pra não abandonar nunca mais. Do curso de Direito propriamente dito não li muita coisa, mas passei os cinco anos lendo filosofia. Hahaha! A biblioteca da Católica é maravilhosa, e lá eu descobri Joseph Campbell, Céline, Paul Auster... não tem livro que chegue!
 
Também aconteceram os namoros literários: o namorado que lia o Bhaghavad Gita, que eu tinha em casa mas nunca havia lido; o que me apresentou a Campos de Carvalho e sabia Baudelaire de cor; o que lia os russos... em russo!
Por fim, não posso esquecer dos grupos de leitura. Assim, de juntar os amigos e ler, simplesmente. Primeiro, dois anos de Nietzsche. Domingo à noite, na casa de Poli, com petiscos e refrigerante. E ninguém faltava. Depois, outro grupo na livraria Cultura, mas demorou pouco.
 
E por último o Porto Solar... Ah, o Porto Solar!...
Parecia o clube da Luluzinha: cinco amigas doidas, toda sexta à tarde, aqui em casa, lendo e fofocando. Não necessariamente nessa ordem. Hehehe. Muita risada, comida (nunca comi tanta besteira na vida), e muita, muita leitura. Mitologia, história, romance, qualquer coisa. Sempre bom, sempre leve, sempre alegre. Como nada no mundo é eterno, acabou. Por vários motivos: casamento, trabalho, estudos, etc. Ainda tentamos manter em outro horário, em outro dia, online, agregar mais amigos, mas não deu. Mas a alma do Porto Solar continua. Aqui nesse blog, em cada livro, em cada assunto legal que a gente vê ou fica sabendo, na amizade que continua.
 
Quando eu ouço Caetano cantar que “os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil que votamos aos maços de cigarros”, sei exatamente do que ele fala. A cada livro novo que eu pego, sinto o cheiro, folheio, todo um universo é evocado em mim. É a memória afetiva mais forte, a mais viva.
É, os livros são uma parte muito importante da minha vida. De certa forma a definem, definem a mim.

sábado, 31 de outubro de 2015

O Deus das Pequenas Coisas


Em uma comunidade semi-rural do interior da Índia cresce o casal de gêmeos Rahel e Estha. Sua infância se passa entre caldeirões de geleia e grãos de pimenta da fábrica de Mammachi, sua avó cega: a Paraíso Picles & Polpas. A família, outrora rica e poderosa, é agora só decadência, e tenta se manter com o pouco que restou da prosperidade do passado. Rahel e Estha vivem num mundo entre o real e o imaginário, e têm entre si uma ligação muito mais profunda do que a de quaisquer outros irmãos.

“Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas.
Hoje, tantos anos depois, Rahel tem lembrança de acordar uma noite rindo do sonho engraçado de Estha”.

Tudo na família e no velho casarão rescende a nostalgia e fracasso. A mãe, a carinhosa Ammu, soube que sua vida tinha terminado no dia em que se divorciou do marido. As tradições da Índia não têm espaço para mulheres divorciadas. Como também não o têm para as que não casam, como Baby Kochamma, a tia-avó amarga e venenosa que se dedica a infligir sofrimento e dor a todos em sua volta. E mesmo o querido tio Chacko guarda lá no fundo a dor da perda da única filha, Sophie Mol, fruto do tempo vivido na Inglaterra e do casamento com a única mulher que realmente amou. Há também os fantasmas das glórias não vividas do passado, como o avô que foi entomologista imperial e sofreu a injustiça de não ter reconhecida uma nova espécie de mariposa descoberta por ele.
A imaginação dos gêmeos, na plena inocência dos sete anos de idade, cria universos cheios de mistérios que os apartam da vida cotidiana. Até o dia em que, devido a um acontecimento terrível, Estha é devolvido ao pai e separado de Rahel. Eles (e todos os outros membros da família, cada um a seu modo) descobrem, assim, que a vida pode mudar – para pior – de uma hora para outra e assumir rumos inesperados.

A separação, para os gêmeos, é devastadora. Estha para de falar e se tranca num mundo particular. Rahel cresce vazia e alheia ao que acontece ao seu redor. Para complicar mais ainda a situação, a mãe se apaixona por um pária, um homem sem casta. Na rigidamente escalonada sociedade indiana isso é quase como não ser gente. O reencontro só acontece 23 anos depois, mas então todos já são pessoas diferentes e é preciso muito esforço para reconstruir os laços e lidar com as experiências de vida de cada um.

O Deus das Pequenas coisas foi o livro de estreia da indiana Arundhati Roy e foi traduzido para 18 países, além de ganhar o Booker Prize, prêmio britânico de literatura. Nada mau. O livro não prende logo desde o começo. Confesso que em vários momentos achei-o um pouco monótono, mas aos poucos ele vai ganhando mais e mais força e, ao final, é arrebatador.
O micro-universo da família de Rahel e Estha reflete o macro-universo da sociedade indiana, com suas hipocrisias, seus preconceitos, sua rigidez. Uma sociedade baseada em tradições congeladas no tempo, onde não há espaço para o indivíduo e nem para conceitos como felicidade e realização pessoal. Mas no fim fica aquela sensação de que amor, sabedoria, compreensão do mundo - enfim, as pequenas coisas - são tudo o que realmente importa nessa vida.
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Um Filme Delicado Sem Pieguice


Preciso começar o post dizendo que muitas (MUITAS) vezes os títulos que os filmes estrangeiros recebem quando chegam ao Brasil colocam tudo a perder. Por que será que as distribuidoras colocam títulos tão ruins que fazem a gente rejeitar os filmes sem nem vê-los? Lembro de um que se chamava Amor Maior Que a Vida (em inglês era Waking the Dead, ou seja, acordando os mortos, o que fazia todo o sentido com o enredo) e eu assisti unicamente porque estava em casa com febre, chovia a baldes e eu não tinha mais nada pra fazer. Ainda bem, porque o filme, ao contrário do nome, era ótimo! E não tinha absolutamente nada a ver com o que o título brasileiro sugeria.

Então esse é também o caso do filme sobre o qual vou falar hoje. Em francês é simplesmente La Délicatesse (França, 2011), mas a distribuidora daqui traduziu como A Delicadeza do Amor. ODEIO filme meloso (nem por longe sou do tipo que assiste comédia romântica), e com esse nome eu não chegaria nem perto. Só assisti porque me foi indicado por um colega que tem bom gosto. Foi por um triz. Feita a ressalva, prossigamos.

Se você foi feliz numa época e, de repente, perde tudo de forma brusca e sem sentido, como continua a viver? É o que acontece com Nathalie, personagem de Audrey Tautou (de Amélie Poulin). No começo eu não estava entendendo pra onde o filme ia, porque tudo aconteceu rápido demais: ela conheceu o amorpravidatoda, se apaixonaram, casaram, estavam felizes, pronto. E agora?

Agora a morte, o vazio. O vazio tão, mas tão doloroso que paralisa, e o melhor mesmo é fingir que está tudo bem, não pensar, ir pro trabalho, comer, dormir.

Assim age Nathalie. Até que um dia, no meio daquela dor que já dura anos e, de tão concreta, é quase fisicamente palpável, surge Markus, um novo colega de trabalho. Do nada (tipo oi quem é você - pá!) ela dá nele um beijo de cinema. Isso poderia levar a vários caminhos, caso ele não fosse a pessoa mais tímida, desajeitada e inábil do mundo, caso ele soubesse o que fazer. Mas não sabe. Nem ele, nem ela. E aí começa uma luta de querer, de não querer, de não saber o que fazer, de tentar, de medo, de insistir. É como quem está se afogando e busca o ar. E vão tateando aqui e ali, errando e acertando. Quem é você? Quem sou eu? O que estamos fazendo?
No meio disso tudo, eles também têm de lidar com as expectativas das outras pessoas. Markus não se encaixa no ideal estético do par romântico. Nathalie não parece muito "normal". Mas, afinal, relacionamentos precisam seguir padrões?

Confesso que sempre tive certas reservas em relação a Audrey Tautou porque, pra mim, ela fica o tempo todo tentando fazer cara de Juliette Binoche. Mas nesse filme ela conseguiu apagar essa impressão. Sua interpretação é simplesmente incrível! Segura, madura, sem cair na apelação fácil, consistente. E o ator que interpreta Markus (François Damiens) também é muito bom, embora eu ache que a cara de mamão é dele mesmo, não do personagem (hehe).

O filme é lindo, sensível sem ser meloso, delicado, e tem passagens de um humor leve. Está longe de ser um dramalhão romântico. É uma história sobre reconstrução, sobre sentimentos e situações que todo ser humano vai viver na vida, de uma maneira ou de outra. Quem já lidou com a morte sabe do que estou falando. E o final é lindo, lindo!
 
Aqui o trailer.
 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Livros Fundamentais - Fustel de Coulange - A Cidade Antiga

Há livros ruins, bons, ótimos, inesquecíveis. E há livros fundamentais para a nossa vida. Estes últimos formam uma categoria à parte.

São obras que abrem as portas da nossa mente de tal forma que ampliam e aprofundam nossa leitura da realidade, enriquecem nossa visão de mundo e mostram-nos – enquanto indivíduos e enquanto sociedade – de onde viemos, onde estamos e para onde nosso futuro aponta. Enfim, são livros civilizatórios, basilares, imprescindíveis para qualquer um que queira sair da ignorância e compreender o mundo em que vivemos.

Resolvi criar uma tag aqui no blog para falar sobre algumas das obras que, no meu entender, inserem-se nessa categoria de livros fundamentais. Começo com A Cidade Antiga, de Fustel de Coulange.

O autor trata dos primórdios da civilização greco-romana num tempo antigo. Tão antigo que nem os deuses clássicos existiam ainda, e a religião era assunto privativo da família. Cada uma tinha seus deuses, seus ritos, seus cânticos, suas preces. A religião era o centro desse mundo e o definia. E foi ela que deu origem, depois, à polis grega e a muito do que é hoje a civilização ocidental. Ainda hoje nossa cultura é impregnada de conceitos, costumes e ritos dessa época.

Quando os deuses ainda não habitavam o Olimpo cada família cultuava seu antepassado: o pai, o avô, o bisavô. Sempre em linha paterna, sempre o mais velho do clã. O pai, em vida, era o sacerdote e preservava os ritos. Ao morrer tornava-se, ele próprio, um deus, assim como seus ancestrais (chamados de daimons ou heróis pelos gregos e de manes pelos romanos), e em sua honra um fogo era mantido eternamente aceso no local mais nobre da casa, ao qual pessoas de fora não tinham acesso. Ao fogo lar, como era chamado, faziam-se oferendas, libações, pedidos de proteção. Ele mantinha a família unida, ele era o seu símbolo maior (para ver a beleza desses altares busquem por lararium nas imagens do google).

Era uma sociedade fechada, praticamente sem mobilidade, na qual os laços de parentesco eram formados não pelo sangue, mas pela religião. Uma única família podia ter centenas, até milhares de membros, e todos eles seriam comandados pelo mais velho. O bem principal era a terra e esta era indivisível. Com a morte do patriarca a terra não seria dividida entre os herdeiros: passaria a ser gerida pelo primeiro na linha de sucessão.

Nesse mundo, o casamento não significava a comunhão de duas famílias. Ao casar, a mulher perdia qualquer ligação com seus parentes biológicos e passava a pertencer exclusivamente à família do marido. Essa passagem exigia um rito solene. A noiva saía em cortejo pelas ruas num carro enfeitado e acompanhada de outras mulheres. Ela ia vestida de branco, o rosto coberto por um véu e com uma coroa de flores na cabeça. Um coro cantava: “Oh, hímen! Oh, himeneu!”. Ao chegar à nova casa o noivo tinha que levanta-la nos braços e atravessar a porta com cuidado para que seus pés não tocassem a soleira. Este ato simbolizava sua entrada na nova família. O casal partilhava um bolo e algumas frutas, tudo acompanhado de rezas e na presença do fogo lar do marido.

Com o tempo e com a pressão causada pelo crescimento da população, os ritos e os valores da cidade antiga foram se perdendo, sendo integrados a outros, modificando-se. O fogo lar saiu da residência privada e assumiu o centro da cidade. As famílias uniram-se em núcleos cada vez maiores: fratrias, cúrias, tribos. Aos poucos foi surgindo a polis clássica com sua urbe. Os deuses das famílias mais poderosas passaram a ser adotados por coletividades inteiras até tomarem a forma que conhecemos hoje.

Ao ler a Cidade Antiga vamos reconhecendo, aqui e ali, costumes, modos de pensar e ritos que chegaram até nossos dias e definem muito do que somos. O culto do fogo lar se perdeu, mas a chama continua acesa até hoje: transformou-se na lareira das casas modernas e na luz do santíssimo sacramento que é mantida acesa no altar-mor das igrejas católicas. O rito do casamento mantém ecos daquele passado distante. Relações de gênero, de poder, instituições jurídicas, filosofia, democracia, muito herdamos daquele tempo. Reconhecemo-nos nele.

Ler A Cidade Antiga é abrir os olhos. É trazer o passado até o presente. É se encontrar e se descobrir pertencendo a uma linha contínua no tempo, a uma cultura, a uma tradição. É um livro fundamental para entender nosso pensamento ocidental, como e porque somos o que somos. Ele nos faz ver o mundo ao nosso redor de maneira mais clara e compreender melhor a sociedade em que vivemos e porque é tão difícil quebrar preconceitos e mudar antigos costumes que estão profundamente enraizados na nossa mente. Pode parecer incrível, mas o que somos hoje não mudou tanto assim nos últimos quatro mil anos de história.

domingo, 31 de agosto de 2014

Um Livro Estarrecedor

Eu pretendia reiniciar o blog com um texto leve sobre música. Mas tive que mudar de ideia ao terminar de ler o livro sobre o qual vou falar hoje. Eu não estava preparada para o que li.

Falo de Holocausto Brasileiro, livro reportagem de Daniela Arbex que conta a história do Colônia, o maior hospital psiquiátrico do Brasil, localizado em Barbacena, Minas Gerais. O relato me encheu de horror mas, sobretudo, me suscitou questionamentos sobre determinadas crenças que nós, brasileiros, temos sobre nós mesmos. Volto a esse tema ao final.

O Colônia foi fundado em 1903 e funciona até hoje, embora nos anos 90 tenha sofrido uma reformulação. Sua história de quase um século, entretanto, é a história do que pode ser talvez o maior e mais continuado crime contra os direitos humanos já cometido pelo Poder Público no Brasil, com a conivência de toda uma comunidade.

Pelo menos 60 mil (sim, eu disse SESSENTA MIL) pacientes morreram no local ao longo do seu funcionamento, a maioria por maus tratos. Muitos não tinham qualquer diagnóstico de doença mental, e iam para lá como meros dejetos da sociedade. Eles chegavam aos montes, num trem que ficou conhecido como “trem de doido”, réplica perfeita da Nau dos Insensatos relatada por Foucault. Eram moças que perdiam a virgindade antes do casamento, alcoólatras, homossexuais, mulheres confinadas por seus maridos para que eles pudessem casar com as amantes, gente que se envolvia em briga de bar, adolescentes estupradas por seus patrões.


"O exílio no hospital foi a forma que o patrão de Virginópolis (MG) encontrou de silenciar a menina que ele havia estuprado no período em que ela trabalhava em sua casa. Com então cinquenta e quatro anos, ele precisava esconder a gravidez da garota a qualquer custo, nem que, para isso, confiscasse, mais uma vez, a inocência dela.
(...)
Mesmo grávida, ela tomou seu primeiro eletrochoque, para “amansar”, disseram os guardas.
(...)
No domingo, sairia do Colônia levando o filho. Quando chegou, no entanto, percebeu algo de errado. (...) Angustiada, ela iniciou a procura pelo menino de três anos.

- Cadê meu filho? – perguntava Geralda a cada funcionária que encontrava pelo caminho.
- Não está mais aqui. Foi levado para longe – respondeu uma das freiras que acabava de chegar".

As condições em que viviam eram absolutamente desumanas. Num edifício projetado para receber 200 pessoas, chegaram a morar, ao mesmo tempo, mais de cinco mil. As camas foram retiradas para que o chão fosse coberto com capim e, assim, pudesse caber mais gente na hora de dormir. Os internos bebiam água do esgoto.
 
"Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão".

Em seus piores momentos, o Colônia chegou a presenciar uma média de 16 mortes por dia, causadas por fome, doenças, maus tratos. Vários pacientes não resistiam aos eletrochoques. Havia também outras formas de tortura. Durante as noites geladas da serra mineira, internos eram colocados nus, ao relento no pátio, sem qualquer proteção. Instintivamente, colavam-se uns aos outros formando um círculo, e passavam a noite se alternando: os que estavam do lado de dentro iam para fora, e vice-versa, na tentativa de não morrerem congelados. Nem sempre funcionava.

A fome desumanizava. Em uma ocasião, uma das internas mais rebeldes (sem diagnóstico de doença mental) apanhou um pássaro no pátio e, na frente de todos, destroçou-o com os próprios dentes e o comeu.

Claro que todas essas mortes produziam um grande número de cadáveres aos quais era preciso dar alguma destinação. Começou, então, a venda ilegal de corpos para faculdades de medicina de todo o país, até o dia em que o mercado ficou saturado e a direção do hospital passou a dissolve-los numa banheira de ácido na frente dos internos. O lucro disso tudo, até hoje não se sabe para onde foi. Também não há notícia do que foi feito do dinheiro obtido com o trabalho de internos que eram obrigados a construir estradas e fazer outros serviços pesados.

Era muito, muito horror: crianças em berços deixadas para morrer, internas grávidas que passavam fezes nas próprias barrigas para protegerem a si e a seus filhos, doentes terminais sem qualquer assistência. Enfim, qualquer imagem do inferno poderia ser menos chocante do que a realidade do Colônia.
 
O psiquiatra italiano Franco Basaglia, ao visitar o local, resumiu suas impressões: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”. Inúmeras denúncias foram feitas antes que as autoridades tomassem alguma atitude.

Isso me traz de volta ao que falei no início deste texto: o relato sobre o Colônia me fez questionar, não pela primeira vez, determinadas crenças que nós, brasileiros, temos sobre nós mesmos. Costumamos acreditar que somos um povo solidário, caloroso, cheio de compaixão e até mesmo caridoso. Então como uma tragédia de tal amplitude pôde acontecer durante tanto tempo numa pacata cidade do interior mineiro sem que houvesse um clamor popular para denunciá-la? Como uma cidade inteira convive com tamanho horror durante quase um século e nada faz? A comparação com o nazismo não é descabida. Na Alemanha da guerra as pessoas faziam vista grossa à fumaça dos fornos crematórios dos campos de concentração e seguiam suas vidas normalmente.

Isso ocorreu em Barbacena, mas poderia ter sido em qualquer outra cidade brasileira e o resultado seria o mesmo. É preciso questionar nossos conceitos, nossas crenças sobre quem somos, a fim de que desgraças como esta não voltem a ocorrer. É preciso saber dos fatos, para que não sejam jamais esquecidos.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Golpe de Estado no Porto Solar

Porto Solar acaba de sofrer um golpe de Estado. Ele era para ser um blog coletivo, mas praticamente só quem postava era eu, e o coitado andava totalmente abandonado. Sem querer destruí-lo e achando que tem muito assunto interessante sobre o que se falar, resolvi tomar o poder e assumir eu mesma todas as postagens. Uhuuu!!!
 
Pretendo postar uma vez por semana, pra não encher a paciência de ninguém. Estou preparando a volta. Aguardem.
 
Beijocas!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Elogio da Madrasta - Mário Vargas Llosa em versão erótica


Eu acho o seguinte: se a pessoa está a fim de ler putaria, (é essa a palavra, nem venha dar uma de santinho) tem que pegar logo de boa qualidade. Esse negócio de 50 Tons de Cinza (não li e não gostei) é coisa de mulherzinha que quer dar uma de santa mas tem vontade de ler A casa dos Budas Ditosos. Então, se vai pegar literatura erótica, pegue logo de quem sabe fazer, de um escritor que vai pesar na mão: Nelson Rodrigues, João Ubaldo Ribeiro (embora a Casa dos Budas seja exceção em sua obra, mas justamente confirma o que estou dizendo), Boccage, etc.
Foi o que fiz. Quando vi Elogio da Madrasta, de Mario Vargas Llosa, na estante da livraria, achei o título a cara de Nelson Rodrigues e pensei: aí tem coisa boa e bem escrita. Claro, quem sabe escrever, sabe mesmo, né? Não decepciona. E eu não conhecia essa veia "safadjenha" do autor de livros inesquecíveis como A Festa do Bode. Adorei! Vamos ao conteúdo.
 
Bem, é a história de uma família de Lima, no Peru, composta por pai, filho, madrasta e uma empregada que fica no meio do tiroteio. Dom Rigoberto já está no seu segundo casamento, assim como sua esposa, Lucrécia, que completou 40 anos e só agora aflorou para os prazeres da vida sexual (olha Balzac aí, gente!). O casal praticamente não tem existência própria fora da cama. Tudo gira em torno da super caliente vida conjugal dos dois, suas fantasias, suas práticas noturnas, os intermináveis rituais de asseio e embelezamento de Dom Rigoberto antes de cair nos braços da amada.
 
Mas há também Alfonso, filho do primeiro casamento de Dom Rigoberto. O medo do pai era que o menino não se desse bem com a madrasta e sua vida virasse um inferno. Acontece que é o contrário: a criança gosta muito da madrasta. Muito. Demais, se é que vocês me entendem. E , embora Fonchito seja apenas uma criança, Lucrécia não lhe fica indiferente. Aí a coisa complica.
 
É como eu digo: se vai ler, leia logo de um mestre. Da mesma forma que João Ubaldo tocou em temas tabus, Vargas Llosa também não se intimida diante de um assunto proibido, e tece a história de tal maneira que não dá pra parar antes do fim. A atenção fica presa, querendo saber o que vai acontecer em seguida. Há sempre uma tensão no ar, aquela sensação de quando a gente sabe que não deve ultrapassar certos limites mas mesmo assim ultrapassa.
 
O final, que tinha tudo pra ser meia boca, é arrebatador, assustador, arrepiante. Ao mesmo tempo em que nada é como parece ser, tudo é como a gente tinha pressentido, só que bem pior. Olha, não vou contar mais não. Tem que ler.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Trilogia da Escuridão



Eu sei, ninguém aguenta mais falar de vampiros. Nos últimos tempos houve uma verdadeira avalanche deles em filmes, livros, séries de TV. Todo mundo querendo aproveitar o rastro do sucesso de Crepúsculo e fazer um pezinho de meia. Aí a gente pensa: já deu, né? Mas eu prometo que, para os vampiros dos quais vou falar hoje, vale a pena dar mais uma chance.

Pra começar, qual o seu conceito sobre vampiros? Mortos-vivos de pele pálida e gélida, misteriosos, cheios de sex-appeal e até mesmo um pouco românticos? Ou a coisa esquisita e purpurinada de Crepúsculo? Para ler a trilogia formada pelos livros Noturno, A Queda e Noite Eterna, esqueça tudo isso.

Os vampiros de Guillermo del Toro e Chuck Hogan não têm nada de charmosos nem de sedutores. São criaturas asquerosas, de pele ressecada e grossa como couro, com um apêndice no lugar da língua que se projeta a até um metro de distância e suga o pescoço da vítima. É. Nem presas afiadas nem olhar sensual. E pra eles você não passa de comida. Ele se apaixonar por você é o mesmo que você se apaixonar por uma vaca. Além do mais, o vampirismo, nesse caso, é causado por vermes que provocam uma infecção na corrente sanguínea e deixam a temperatura do corpo quente, como uma febre eterna, e podem ser vistos se movendo sob a pele. E se propaga não apenas pela ferroada, mas, se você ferir o vampiro, os vermes saem escorrendo pelo chão e podem entrar no seu corpo de qualquer jeito. Nojento. Como se isso não bastasse, os vampiros funcionam como uma colmeia, obedecendo a um Mestre e se comunicando telepaticamente. A única maneira de matar tais criaturas é com a luz ultravioleta, seja do sol, seja artificial. Tá bom ou quer mais?

A trilogia toda é muito bem construída. Não sobram pontas soltas nem argumentos falhos. O ritmo é veloz e os personagens, muito bem caracterizados e convincentes, embora um pouco óbvios (não sei se chamo de óbvios ou de clássicos). Tem o sábio que conhece tudo sobre vampiros e se assemelha a Van Helsing, do Drácula. Tem o bad boy cheio de energia que sai dizimando a vampirada. Tem o cientista que usa a razão. E, claro, tem um casal romântico e complicado, como não poderia deixar de ser.

O problema todo começa com um avião que chega a Nova York com todos os passageiros e a tripulação misteriosamente mortos. E vai ficando pior, bem pior. Não vou botar spoilers aqui, mas adianto que o negócio fica tão feio que inclui até um inverno nuclear.

Deu vontade de ler? Ainda tem um temperinho a mais. Os autores criaram, dentro da história, o Occido Lumen, um livro que deve entrar para o rol das obras fictícias que todo mundo gostaria de ler, ao lado do Necronomicon de Lovecraft, da Enciclopédia Galactica de Asimov e do Livro Vermelho de Tolkien. Só pra deixar a gente com água na boca.

Cogita-se que a história vire filme ou algo parecido, mas até agora não há nada confirmado. Aqui um teaser do primeiro volume, Noturno, no youtube.
http://www.youtube.com/watch?v=BTuJCqs2fRs

domingo, 18 de agosto de 2013

Os Últimos Soldados da Guerra Fria


 Acabei de ler hoje Os Últimos Soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais (o mesmo autor de Chatô e Olga), que fala sobre as ações de espionagem entre Cuba e os Estados Unidos entre 1990 e o início dos anos 2000. O autor, claramente, toma partido: ele é pró-Cuba. O país é apresentado como vítima de conspirações orquestradas pela comunidade cubana que vive nos EUA (mas eu, que tenho mais de dois neurônios, não preciso engolir essa conversa assim, sem maiores ponderações), embora também tenha seus agentes na Flórida.
Na queda de braço entre os dois países não há bonzinhos, isso é sabido. Se, por um lado, há uma luta desproporcional entre a maior superpotência do mundo e uma pequena ilha comunista (hoje já não tanto) que tenta se manter viva depois da queda dos países da antiga Cortina de Ferro, por outro há, também, um embate entre uma democracia consolidada (tá, com inúmeros questionamentos) e uma ditadura que insiste em não largar o osso.

Ficamos conhecendo em detalhes eventos, personagens, datas e o contexto em que ocorreram. Tudo dando nomes aos bois: os nomes são reais, há fotos das pessoas citadas, há cópias de documentos, etc. Ficamos sabendo, por exemplo, que em Miami há diversas organizações anticastristas que funcionam legalmente, inclusive com registro junto às autoridades americanas (!!!), e que são sustentadas por cubanos que saíram da ilha e foram bem sucedidos financeiramente nos Estados Unidos. Assim, muitas delas dispõem de dinheiro para comprar aviões, armamento, contratar pilotos e agentes, bancar a produção de panfletos e outros materiais de propaganda ideológica. Também tomamos conhecimento de que em boa parte da América Latina funciona um mercado de terroristas mercenários, sem qualquer vinculação política ou ideológica, que por qualquer merreca topam ir a Cuba como turistas e soltar uma bomba.
Há passagens bizarras e até mesmo revoltantes, como as várias vezes em que os aviões dessas organizações invadem o espaço aéreo de Cuba e sobrevoam a capital, Havana, soltando panfletos contra Fidel Castro. E o que Cuba pode fazer? Invadir os Estados Unidos? Óbvio que não. Apenas espernear, denunciar à ONU e ficar por isso mesmo. Até o dia em que resolve abater dois desses aviões e a coisa complica.

O lado B da história é a ação dos agentes cubanos instalados em Miami. São pessoas vivendo com orçamentos apertados, tendo que trabalhar para manter o próprio sustento ao mesmo tempo em que se infiltram nas organizações para espionar. Entretanto, como falei no início, não há bonzinhos. Esses agentes não hesitam em constituir famílias nos EUA como parte de suas “atribuições”. Uma coisa calculada e planejada matematicamente e, desde o início, com prazo de validade: assim que cumprem as tarefas para as quais foram designados, abandonam esposa e filhos e voltam para Cuba sem sequer dar notícia. Algo absolutamente desumano. Também traem amigos, os parentes que ficaram na ilha e quaisquer pessoas que cruzem seus caminhos. São de uma frieza incrível.
O livro é rico em informações e em documentação, é uma pesquisa impressionante, porém por vezes se alonga demais em assuntos que poderia tratar resumidamente (Fernando Morais é prolixo, né? A gente já viu isso em Chatô). Há passagens que prendem a atenção, como a participação de Gabriel García Márquez como mediador numa troca de informações entre Cuba e a Casa Branca, e outras totalmente dispensáveis, como as longas descrições sobre a vida afetiva de alguns agentes. Enfim, indico para as pessoas que tenham realmente interesse no assunto e queiram aprofundar-se em detalhes.

Aqui o link do autor falando sobre o livro no Programa do Jô. Vale a pena ver.